Por que ler as obras?

Solitária, Eliana Alves Cruz (2022)

O livro de Eliana Alves Cruz é um convite para discutir o racismo estrutural ao recorrer à reprodução do modelo escravocrata colonial em um contexto capitalista, tão presente na arquitetura de apartamentos da classe média e alta brasileiras, o quartinho da empregada, e na configuração do trabalho doméstico, em sua maioria exercido por mulheres negras e de baixa renda. O romance, aliás, cria uma visão crítica ao nomear cada capítulo por meio dos cômodos da casa, enfatizando quais os locais de movimentação e de pertencimento dos personagens do luxuoso Golden Plate.

Ao acompanhar a história de Mabel e Eunice, respectivamente mãe e filha, o/a leitor/a depara-se com certa diferença geracional no entendimento das diferentes violências produzidas pelo racismo cotidiano vivenciado por pessoas pretas. A narrativa enfatiza o problema estabelecido por práticas perversas de falso acolhimento parental – marcado pela expressão “quase da família” – que expressam a existência daquela que é de longa data empregada em uma residência mais como objeto patrimonial que como um sujeito investido de laços de afeto – familiaridade instável que pode romper-se a qualquer momento segundo os códigos capitalistas dos patrões. O projeto literário é enriquecido pela alternância de pontos de vista de três personagens distintos, Mabel, Eunice e um narrador-testemunha, o próprio “quarto de empregada”.

Outro ponto importante da obra de Eliana Alves Cruz é outra reverberação do período escravocrata – as condições precárias de vida estabelecidas para população negra após a assinatura da lei Áurea, marcadas pelo completo abandono por parte do Estado daqueles/as que tanto foram explorados –, responsável por reproduzir a impossibilidade das próprias mães pretas maternarem seus próprios/as filhos/as uma vez que, para garantir a própria subsistência, precisaram tutelar as crianças dos patrões brancos. Esse ciclo produz diversas feridas no núcleo familiar das pessoas pretas e é responsável por garantir a manutenção de um sentimento de ausência afetiva das crianças, a introdução precoce no domínio laboral e o enfrentamento da invisibilidade social.

Publicada em 2022, durante o período da pandemia, a narrativa do livro foi, de acordo com a própria escritora, fortemente influenciada pelo impactante caso do menino Miguel Otávio Santana da Silva, que morreu em 2020 ao cair do nono andar de um prédio de luxo em Recife. O garoto negro havia sido deixado aos cuidados da patroa quando a empregada “doméstica” passeava com os cachorros no térreo. A revolta produzida por tal tragédia inspirou uma trama que é vocalizada pelos personagens “de baixo”: a empregada e sua filha, a babá adolescente, o zelador e o quarto.

Pelas questões destacadas, não é difícil perceber que o romance assume um caráter de denúncia, tomando como estopim um crime ocorrido na residência dos patrões, e fazendo o título da obra indicar duas leituras possíveis: o espaço minúsculo e segregado do “quartinho de empregada”, similar a uma pequena cela; e o sentimento de solidão (no sentido de segregação social) experimentado pelas pessoas pretas frente às situações de racismo. A leitura da obra, portanto, contribui para o entendimento do pacto de subalternidade construído pela branquitude no Brasil contemporâneo (neste caso específico, pela interseccionalidade de questões de classe, raça e gênero) e atua na desconstrução do (falso) imaginário da democracia racial.


Parque industrial, Pagu (1933)

Escritora homenageada ano passado na mais importante feira literária do país, a FLIP (Feira Literária de Paraty), Patrícia Galvão, conhecida como Pagu, realizou contribuições literárias muito importantes para o Modernismo brasileiro ao lado de Oswald de Andrade, de quem foi companheira. Parque Industrial, publicado em 1933, obra ímpar da escritora, militante e feminista, emerge, portanto, como uma escolha enriquecedora e indispensável para compor a lista de leituras obrigatórias do Vestibular UFSC 2025.

Marcado por uma narrativa vibrante e comprometida com a crítica social, o romance oferece uma imersão nos dilemas da sociedade brasileira do início do século XX, contribuindo significativamente para a formação literária e a consciência política. A força do romance reside não apenas na maestria narrativa de Pagu, experimental e sintética, mas também na sua perspicaz abordagem das questões de gênero, classe e poder. Ao retratar a vida em um contexto industrial, a autora desvela as intrincadas relações de opressão que permeiam a sociedade, proporcionando aos/às leitores/as uma visão crítica e esclarecedora sobre as desigualdades estruturais que persistem até os dias atuais, tais como a precarização do trabalho, jornadas laborais exaustivas, a subvalorização do trabalho da mulher.

Partindo da história de um grupo de operárias – Otávia, Rosinha Lituana, Corina, Matilde e Eleonora, a obra personifica a luta feminina por autonomia e igualdade no período de industrialização emergente de São Paulo, notadamente no ambiente têxtil do bairro do Brás, desafiando os arraigados padrões tradicionais da época de forma combativa. Sua jornada pela busca da identidade e liberdade individual representa um poderoso convite à reflexão sobre os estereótipos de gênero, à necessidade de desconstrução de normas patriarcais e à luta da classe proletária da sociedade capitalista industrial da época.

Além disso, Parque Industrial é um retrato autêntico da diversidade cultural e das tensões políticas que caracterizaram o Brasil nas primeiras décadas do século XX, cumprindo, assim, função de testemunho histórico ao unir o estético e o político, e que permite um mergulho na história e na formação da identidade nacional de modo mais crítico.