Por que ler as obras?
Primeiro de abril: narrativas da cadeia, de Salim Miguel (1994)
Trinta anos após o golpe de 1964, Salim Miguel publicou a narrativa sobre os quarenta e oito dias em que esteve “detido para averiguações”, no início da ditadura civil-militar. Trata-se do livro Primeiro de abril: narrativas da cadeia, reeditado pela EdUFSC nas comemorações do centenário de nascimento de um dos mais proeminentes escritores da literatura produzida em Santa Catarina. Salim Miguel foi uma figura muito importante para a modernização das artes no estado: foi um dos líderes ativos do Grupo Sul, entre 1947 e 1958, e escreveu, juntamente com sua esposa Eglê Malheiros, o argumento e o roteiro do primeiro filme de longa-metragem catarinense, O preço da ilusão.
O escritor manteve um diário durante o período de sua prisão, no qual registrou as percepções e os fatos ligados à sua detenção no quartel da Polícia Militar em Florianópolis. Trabalhou posteriormente sobre o texto e, com isso, publicou Primeiro de abril (título que faz alusão à data do golpe), o qual foi premiado como melhor romance pela União Brasileira de Escritores em 1994.
O testemunho de Salim nos permite conhecer os meandros da repressão promovida pela ditadura em Florianópolis. Em um contexto no qual tanto tem se destacado a importância da memória e da justiça em relação às violências e mortes pelas quais os agentes da ditadura civil-militar brasileira foram responsáveis, o relato de Salim nos permite entender como essas ações aconteceram não apenas nos grandes centros urbanos brasileiros, mas também nas outras regiões do país.
S. Bernardo, de Graciliano Ramos (1934)
Romance que trouxe a seu autor o reconhecimento da crítica, S. Bernardo leva por título o nome da fazenda construída por seu protagonista e narrador, Paulo Honório. Publicado em 1934, o livro é um dos clássicos da chamada “Segunda Geração Modernista”, que combina o compromisso social em denunciar os problemas sociais do Brasil com a busca de uma linguagem mais próxima do falar brasileiro.
Além de prefeito de Palmeira dos Índios (AL), Graciliano Ramos foi jornalista, perseguido pelo Estado Novo e sujeito fundamentalmente político, empenhado-se em mostrar a degradação das relações e da humanidade dentro do sistema capitalista. Em termos historiográficos, costuma ser enquadrado no grupo de escritores de diferentes estados do Nordeste que, a partir do final da década de 1920, resolve tratar da realidade do sertão, entre os quais estão, além dele próprio, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e José Américo de Almeida. A singularidade de Graciliano, no entanto, impede que se resuma sua literatura a rótulos como “regionalista”; a análise profunda que faz dos caracteres e das relações humanas faz com que ainda tenha sentido lê-lo, quase um século depois, quando cada vez mais coisificados somos.
No que se refere à desumanização, o protagonista de S. Bernardo é exemplar: Paulo Honório não é apenas um homem do campo, pouco estudado; é alguém que foi sendo embrutecido pela vida, pelo trabalho, tornando-se autoritário e perdendo a própria humanidade ao ser dominado pela ambição e pelo desejo de poder. “As pessoas que me lerem terão, pois, a bondade de traduzir isto em linguagem literária, se quiserem. Se não quiserem, pouco se perde. Não pretendo bancar escritor.” Paulo Honório, jovem que foi pobre, viveu sua vida, a partir de certo ponto, em função de se apossar das terras da fazenda e de aumentar suas propriedades e seu poder e ao final da vida, quando olha em retrospecto, percebe que foi “tornando-se coisa”. Isso se materializa na violência com que trata a esposa Madalena, professora, cuja visão de mundo diverge extremamente da sua, ao ponto de não haver qualquer conciliação ou prazer possível na vida. Ao querer transformar tudo em propriedade, o personagem se confronta, justamente, com o que lhe escapa.
O outro lado da bola, de Alvaro campos, Alê Braga e Jean Diaz
A novela gráfica (do inglês, graphic novel) “O Outro Lado da Bola”, com roteiro de Alvaro Campos e Alê Braga, e ilustrações de Jean Diaz, não é apenas uma história sobre futebol. É um retrato cortante de como o esporte pode ser atravessado pelo machismo – um espaço no qual “futebol é jogo para homem” –, revelando feridas sociais que o Brasil insiste em esconder. Através de traços visuais brutais e de uma narrativa fragmentada, os autores desmontam a imagem do futebol como “símbolo de união”, revelando um universo onde corpos LGBTQIA+ são silenciados, a homossexualidade é tratada como doença a ser curada e a violência se disfarça de tradição.
As cenas que retratam a cobertura jornalística — com seus flashes, manchetes sensacionalistas e narrativas heroicas — contrastam com a realidade dos personagens que vivem à margem desse circo. Na obra, a mídia aparece não como observadora, mas como cúmplice de um sistema que comercializa corpos, apaga histórias e reforça estereótipos. Dessa forma, expõe como o discurso midiático contribui para alimentar a violência simbólica, transformando as diferenças (de torcida, de sexualidade) em motivo para exclusão, chacota e violência gratuita – esta última sofrida gravemente por Augusto Xavier Brandão, o Guto, ex-namorado de Cris. A violência, tema inextricável do futebol brasileiro, é retratada em múltiplas camadas, não apenas a dos estádios — com brigas entre torcidas e repressão policial —, mas a que se esconde nas estruturas do esporte.
Nesse sentido, a escolha pela novela gráfica não é casual. Em uma era em que a literatura expande seus formatos para dialogar com novas gerações, Braga, Campos e Diaz usam a força das imagens para denunciar o que as palavras sozinhas não conseguem traduzir. As expressões faciais dos personagens, por exemplo, carregam nuances de medo, raiva e resistência que um texto puramente verbal talvez levasse páginas para descrever. A justaposição de planos visuais — o privado versus o público — sintetiza o cerne da obra: a disputa entre quem quer ocupar espaços e quem quer mantê-los restritos.
Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (1881)
Machado de Assis é escritor que dispensa apresentações, uma vez que é cultuado pela crítica como o grande clássico da Literatura Brasileira, quiçá da Literatura de Língua Portuguesa. Todavia, vem sendo redescoberto na contemporaneidade por novas gerações de leitores, influenciados no Brasil por projetos como a campanha “Machado de Assis Real”, promovida pela Faculdade Zumbi dos Palmares, em 2021, com o intuito de reforçar a identidade negra do autor, que foi embranquecido em suas representações, fotos e caricaturas ao longo do século XX e início do XXI.
No exterior também testemunhamos um fenômeno literário recente: uma tradução de Memórias póstumas de Brás Cubas para o inglês tornou-se um best seller nos Estados Unidos da América em 2024, o que reacendeu discussões ao redor dessa obra também nas mídias sociais brasileiras, impactando nas vendas nacionais do livro, que voltou a figurar em listagens de mais vendido no Brasil, mais de 140 anos depois de seu lançamento.
Publicado primeiro na forma de folhetim, no ano de 1880, Memórias póstumas de Brás Cubas foi editado em livro em 1881, marcando o fim da fase romântica e o início da fase realista — tanto na obra de Machado de Assis, quanto na própria literatura brasileira. O romance é de uma originalidade surpreendente, com um foco narrativo em que não temos propriamente um “autor defunto, mas um defunto autor”; com uma dedicatória que eternizou as palavras “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver”; passagens como: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”; e ainda “O velho diálogo de Adão e Eva”, em que uma relação entre Brás Cubas e Virgília é verbalizada apenas por meio de sinais de pontuação. Tudo em meio a uma miscelânea de capítulos curtos, em que se alternam narrativa autobiográfica, relato fantástico, diálogos, alegorias e reflexões filosóficas sobre temas como o nariz ou o uso das botas.
Brás Cubas é bastante didático na carta de apresentação endereçada ao leitor de seu romance, ao afirmar tratar-se de uma obra escrita “com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”. Conúbio que evidencia a ironia de Machado ao longo das páginas, em que apenas um narrador livre de vínculos com os vivos, pode revelar as verdadeiras intenções por detrás do comportamento humano, a essência por trás da aparência, em uma sociedade tão hierarquizada e desigual. Homem burguês de família abastada, Brás Cubas não leva adiante os seus projetos de vida, mas sua condição social lhe permite a boa fortuna de viver de modo confortável e mesmo caprichoso, sem jamais comprar o pão com o suor do seu rosto.
Solitária, de Eliana Alves Cruz (2022)
O livro de Eliana Alves Cruz é um convite para discutir o racismo estrutural ao recorrer à reprodução do modelo escravocrata colonial em um contexto capitalista, tão presente na arquitetura de apartamentos da classe média e alta brasileiras, o quartinho da empregada, e na configuração do trabalho doméstico, em sua maioria exercido por mulheres negras e de baixa renda. O romance, aliás, cria uma visão crítica ao nomear cada capítulo por meio dos cômodos da casa, enfatizando quais os locais de movimentação e de pertencimento dos personagens do luxuoso Golden Plate.
Ao acompanhar a história de Mabel e Eunice, respectivamente mãe e filha, o/a leitor/a depara-se com certa diferença geracional no entendimento das diferentes violências produzidas pelo racismo cotidiano vivenciado por pessoas pretas. A narrativa enfatiza o problema estabelecido por práticas perversas de falso acolhimento parental – marcado pela expressão “quase da família” – que expressam a existência daquela que é de longa data empregada em uma residência mais como objeto patrimonial que como um sujeito investido de laços de afeto – familiaridade instável que pode romper-se a qualquer momento segundo os códigos capitalistas dos patrões. O projeto literário é enriquecido pela alternância de pontos de vista de três personagens distintos, Mabel, Eunice e um narrador-testemunha, o próprio “quarto de empregada”.
Outro ponto importante da obra de Eliana Alves Cruz é outra reverberação do período escravocrata – as condições precárias de vida estabelecidas para população negra após a assinatura da lei Áurea, marcadas pelo completo abandono por parte do Estado daqueles/as que tanto foram explorados –, responsável por reproduzir a impossibilidade das próprias mães pretas maternarem seus próprios/as filhos/as uma vez que, para garantir a própria subsistência, precisaram tutelar as crianças dos patrões brancos. Esse ciclo produz diversas feridas no núcleo familiar das pessoas pretas e é responsável por garantir a manutenção de um sentimento de ausência afetiva das crianças, a introdução precoce no domínio laboral e o enfrentamento da invisibilidade social.
Publicada em 2022, durante o período da pandemia, a narrativa do livro foi, de acordo com a própria escritora, fortemente influenciada pelo impactante caso do menino Miguel Otávio Santana da Silva, que morreu em 2020 ao cair do nono andar de um prédio de luxo em Recife. O garoto negro havia sido deixado aos cuidados da patroa quando a empregada “doméstica” passeava com os cachorros no térreo. A revolta produzida por tal tragédia inspirou uma trama que é vocalizada pelos personagens “de baixo”: a empregada e sua filha, a babá adolescente, o zelador e o quarto.
Pelas questões destacadas, não é difícil perceber que o romance assume um caráter de denúncia, tomando como estopim um crime ocorrido na residência dos patrões, e fazendo o título da obra indicar duas leituras possíveis: o espaço minúsculo e segregado do “quartinho de empregada”, similar a uma pequena cela; e o sentimento de solidão (no sentido de segregação social) experimentado pelas pessoas pretas frente às situações de racismo. A leitura da obra, portanto, contribui para o entendimento do pacto de subalternidade construído pela branquitude no Brasil contemporâneo (neste caso específico, pela interseccionalidade de questões de classe, raça e gênero) e atua na desconstrução do (falso) imaginário da democracia racial.
Parque industrial, de Pagu (1933)
Escritora homenageada em 2024 na mais importante feira literária do país, a FLIP (Feira Literária de Paraty), Patrícia Galvão, conhecida como Pagu, realizou contribuições literárias muito importantes para o Modernismo brasileiro ao lado de Oswald de Andrade, de quem foi companheira. Parque Industrial, publicado em 1933, obra ímpar da escritora, militante e feminista, emerge, portanto, como uma escolha enriquecedora e indispensável para compor a lista de leituras obrigatórias do Vestibular UFSC 2026.
Marcado por uma narrativa vibrante e comprometida com a crítica social, o romance oferece uma imersão nos dilemas da sociedade brasileira do início do século XX, contribuindo significativamente para a formação literária e a consciência política. A força do romance reside não apenas na maestria narrativa de Pagu, experimental e sintética, mas também na sua perspicaz abordagem das questões de gênero, classe e poder. Ao retratar a vida em um contexto industrial, a autora desvela as intrincadas relações de opressão que permeiam a sociedade, proporcionando aos/às leitores/as uma visão crítica e esclarecedora sobre as desigualdades estruturais que persistem até os dias atuais, tais como a precarização do trabalho, jornadas laborais exaustivas, a subvalorização do trabalho da mulher.
Partindo da história de um grupo de mulheres pobres, várias delas operárias – Otávia, Rosinha Lituana, Corina, Matilde e Eleonora -, a obra personifica a luta feminina por autonomia e igualdade no período de industrialização emergente de São Paulo, notadamente no ambiente têxtil do bairro do Brás, desafiando os arraigados padrões tradicionais da época de forma combativa. Sua jornada pela busca da identidade e liberdade individual representa um poderoso convite à reflexão sobre os estereótipos de gênero, à necessidade de desconstrução de normas patriarcais e à luta da classe proletária da sociedade capitalista industrial da época.
Além disso, Parque Industrial é um retrato autêntico da diversidade cultural e das tensões políticas que caracterizaram o Brasil nas primeiras décadas do século XX, cumprindo, assim, função de testemunho histórico ao unir o estético e o político, e que permite um mergulho na história e na formação da identidade nacional de modo mais crítico.