Por que ler as obras?

Velhos, Alê Motta

Tendo estreado na ficção com “Interrompidos” (Reformatório, 2017), Alê Motta, na coletânea de contos “Velhos” (Reformatório, 2020), investe em dois elementos inovadores na literatura brasileira: a extensão dos contos e a temática abordada. Quanto ao primeiro aspecto, as narrativas que compõem o livro facilmente seriam classificadas como microcontos – uma categoria crítica ainda recente e bastante elástica, porque inclui histórias com extensão variando entre uma linha e duas páginas. Embora o termo seja relativamente novo, pode-se apontar uma certa ‘tradição microcontista’ constituída por experiências e projetos ficcionais como os de Oswald de Andrade, Elias José, Marina Colasanti, Dalton Trevisan, Rosa Amanda Strauz, João Gilberto Noll, Marcelino Freire, João Anzanello Carrascoza, dentre outros. O segundo aspecto que merece atenção é o trabalho com a temática da velhice, com corpos que costumam ser invisibilizados tanto na sociedade quanto na literatura – especialmente no papel de protagonistas. A concisão das narrativas de Alê Motta não impede um tratamento multifacetado acerca do envelhecer, com momentos perturbadores, divertidos e melancólicos. Estão ali presentes problematizações sobre o modo como as pessoas são postas à margem do mundo social com o passar do tempo, consideradas não mais funcionais ao capitalismo, segundo a expressão do preconceito etário. Os temas da deterioração da memória, de doenças incapacitantes, do medo da morte, da vida como jornada e das experiências acumuladas são pontos de destaque. Vale salientar que “Velhos” também ironiza estereótipos culturais do imaginário, por exemplo, o de que basta envelhecer para se tornar um velho sábio e bonzinho, pois há também a contraparte perversa e estúpida.


Tropicalia ou Panis et circencis, álbum musical produzido por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Gal Costa e pelo grupo Os Mutantes (Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias), com arranjos de Rogério Duprat e participação de Nara Leão, Torquato Neto e José Carlos Capinam (1968)

Um álbum musical é uma criação coletiva, feita por muitas mãos, entre intérpretes e compositores. Além de cada música individualmente possuir um estatuto textual, o próprio álbum é um texto: a seleção, a organização, a sequenciação e a apresentação das canções é feita visando determinados efeitos e a construção de uma narrativa. Cada música/canção é inscrita em uma série, com as outras, na qual ela é lida de maneira diferente em função de sua relação com as demais.

 Outras universidades já incluíram, no repertório de seus vestibulares, álbuns musicais, inclusive o próprio Tropicalia. Embora música e poesia tenham gozado de grande proximidade desde tempos remotos e as canções sejam escritas com a utilização de muitos recursos poéticos, é preciso que se reconheça sua especificidade. Músicas/canções são feitas para serem interpretadas, arranjadas e, por isso, ganham novos sentidos a partir de como são apresentadas em uma determinada performance.

 O álbum Tropicalia ou Panis et circencis foi lançado em 1968, ano marcado, também, pela edição do AI-5, que tornou ainda mais rígida a repressão da ditadura civil-militar brasileira, instituindo, entre outras medidas, a censura. O disco é visto como um manifesto do Tropicalismo, considerado fundamental e representativo de uma revolução na música popular e nas demais artes brasileiras, que traz consigo, ainda, uma nova interpretação da própria ideia do que seria a cultura brasileira. A canção “Geleia geral”, bem como as doze que compõem o álbum, coloca em cena uma grande diversidade de ritmos e referências como “relíquias do país” – da antropofagia modernista ao iê-iê-iê, do baião ao samba, da televisão à poesia concretista. É importante notar, ademais, a consonância do movimento tropicalista com outras revoluções culturais que marcaram o mundo ao longo da década de 1960, responsáveis por trazer consigo um elogio à liberdade e à experimentação.

 A leitura do álbum como texto, levando em consideração sua capa, na qual figura uma foto clássica dos artistas envolvidos na obra; a contracapa, na forma de roteiro de cinema; e as gravações das músicas/canções é, essencialmente, a relação com um texto dito “multimodal”, ou seja, que articula elementos de vários suportes (verbal, musical, visual). Trata-se de um exercício dos chamados multiletramentos, experiências de leitura que exigem do estudante a relação com múltiplas linguagens, algo que é típico da forma contemporânea de interagir com as diversas esferas discursivas.


Solitária, Eliana Alves Cruz (2022)

O livro de Eliana Alves Cruz é um convite para discutir o racismo estrutural ao recorrer à reprodução do modelo escravocrata colonial em um contexto capitalista, tão presente na arquitetura de apartamentos da classe média e alta brasileiras, o quartinho da empregada, e na configuração do trabalho doméstico, em sua maioria exercido por mulheres negras e de baixa renda. O romance, aliás, cria uma visão crítica ao nomear cada capítulo por meio dos cômodos da casa, enfatizando quais os locais de movimentação e de pertencimento dos personagens do luxuoso Golden Plate.

 Ao acompanhar a história de Mabel e Eunice, respectivamente mãe e filha, o/a leitor/a depara-se com certa diferença geracional no entendimento das diferentes violências produzidas pelo racismo cotidiano vivenciado por pessoas pretas. A narrativa enfatiza o problema estabelecido por práticas perversas de falso acolhimento parental – marcado pela expressão “quase da família” – que expressam a existência daquela que é de longa data empregada em uma residência mais como objeto patrimonial que como um sujeito investido de laços de afeto – familiaridade instável que pode romper-se a qualquer momento segundo os códigos capitalistas dos patrões. O projeto literário é enriquecido pela alternância de pontos de vista de três personagens distintos, Mabel, Eunice e um narrador-testemunha, o próprio “quarto de empregada”.

 Outro ponto importante da obra de Eliana Alves Cruz é mais uma reverberação do período escravocrata – as condições precárias de vida estabelecidas para população negra após a assinatura da lei Áurea, marcadas pelo completo abandono por parte do Estado daqueles/as que tanto foram explorados –, responsável por reproduzir a impossibilidade das próprias mães pretas maternarem seus próprios/as filhos/as uma vez que, para garantir a própria subsistência, precisaram tutelar as crianças dos patrões brancos. Esse ciclo produz diversas feridas no núcleo familiar das pessoas pretas e é responsável por garantir a manutenção de um sentimento de ausência afetiva das crianças, a introdução precoce no domínio laboral e o enfrentamento da invisibilidade social.

 Publicada em 2022, durante o período da pandemia, a narrativa do livro foi, de acordo com a própria escritora, fortemente influenciada pelo impactante caso do menino Miguel Otávio Santana da Silva, que morreu em 2020 ao cair do nono andar de um prédio de luxo em Recife. O garoto negro havia sido deixado aos cuidados da patroa quando a empregada “doméstica” passeava com os cachorros no térreo. A revolta produzida por tal tragédia inspirou uma trama que é vocalizada pelos personagens “de baixo”: a empregada e sua filha, a babá adolescente, o zelador e o quarto.

 Pelas questões destacadas, não é difícil perceber que o romance assume um caráter de denúncia, tomando como estopim um crime ocorrido na residência dos patrões, e fazendo o título da obra indicar duas leituras possíveis: o espaço minúsculo e segregado do “quartinho de empregada”, similar a uma pequena cela; e o sentimento de solidão (no sentido de segregação social) experimentado pelas pessoas pretas frente às situações de racismo. A leitura da obra, portanto, contribui para o entendimento do pacto de subalternidade construído pela branquitude no Brasil contemporâneo (neste caso específico, pela interseccionalidade de questões de classe, raça e gênero) e atua na desconstrução do (falso) imaginário da democracia racial.


Singradura, Flávio José Cardozo (1970)

Reeditados pela Editora da UFSC em 2020, cinquenta anos após a primeira publicação da obra, os contos de Flávio José Cardozo tematizam histórias cotidianas de habitantes da Ilha de Santa Catarina no período em que foi escrito, a segunda metade do século XX. De lá para cá, Florianópolis sofreu vertiginosas transformações paisagísticas, urbanas e populacionais. O escritor Flávio José Cardozo nasceu na cidade catarinense de Lauro Muller, em 1938, e, hoje, é membro da Academia Catarinense de Letras, vivendo na Ilha de Santa Catarina há muitos anos e tendo sido diretor da Imprensa Oficial de Santa Catarina e da Fundação Catarinense de Cultura.

 As vinte narrativas que compõem a obra trazem diversos personagens dessa mesma-outra Ilha, tratando de sua relação de proximidade com o mar em linguagem profundamente marcada pelas metáforas, em especial as marinhas, e pela musicalidade. “Singradura” significa o caminho que um barco percorre em vinte e quatro horas, ou ainda, o próprio ato de navegar, velejar, abrir caminho, percorrer, progredir. O último conto da obra, que dá título à coletânea, traz uma personagem que é exemplar a respeito desse caráter metafórico: Marília, cujo nome é formado pela junção de “mar” e “ilha”, tem o destino simbólico da aparente loucura de esperar que venha do mar seu príncipe encantado para com ele navegar, singrar os mares, a imaginação, a vida, a morte.

 Os contos que compõem a antologia passam-se todos na Ilha de Santa Catarina e trazem profunda imersão psicológica nas personagens, escolhidas entre gente simples, mergulhando em seus pensamentos e sonhos e criando atmosferas de contornos surrealistas em que o real e o imaginário se confundem, por vezes em algo próximo ao que se costuma chamar de “fluxo de consciência”. São textos em que menos do que os acontecimentos, importa como as narrativas se inscrevem no íntimo dos personagens retratados, que sonham, amam, entram em conflitos, vivem, morrem. Na singradura que se desenvolve em cada uma das narrativas, a viagem é muito menos o deslocamento físico do que o encontro consigo mesmo, experiência temática própria dos relatos de viagem, pois o destino não interessa, o ato de viajar é a própria meta.


Torto arado, Itamar Vieira Junior

Geógrafo e doutor em estudos étnicos e africanos pela UFBA, Itamar Vieira Junior já havia publicado as coletâneas de contos “Dias” (2012) e “A oração do carrasco” (2017), mas se tornou amplamente reconhecido após seu romance de estreia “Torto arado” (2018). Com ele venceu em Portugal o Prêmio Leya e recebeu posteriormente os prêmios Jabuti e Oceanos de Literatura, sendo aclamado pela crítica como “um clássico”. Na história, a vida das irmãs Bibiana e Belonísia é marcada, logo nas primeiras páginas, por uma tragédia familiar envolvendo uma velha mala e uma faca que as meninas encontram embaixo da cama da avó. O enredo é conduzido sem excessos ou exageros, protagonizado por mulheres e entidades fortes e complexas, as quais oferecem múltiplas perspectivas sobre a vida de uma família humilde no sertão da Bahia. Apesar da prosa poética e melodiosa, o texto conduz o leitor por temas latentes, como a servidão imposta aos trabalhadores rurais descendentes de escravizados e o direito à terra no Brasil, o que implica problematizar a emancipação dos trabalhadores do campo e a luta pela reforma agrária em nosso país. Além disso, ao colocar em destaque a figura do curandeiro de corpo e espírito Zeca Chapéu Grande, pai das meninas, a obra privilegia as tradições religiosas de matriz africana, tão pouco compreendidas e muito desrespeitadas em nosso país.


Parque industrial, Pagu (1933)

Escritora homenageada ano passado na mais importante feira literária do país, a FLIP (Feira Literária de Paraty), Patrícia Galvão, conhecida como Pagu, realizou contribuições literárias muito importantes para o Modernismo brasileiro ao lado de Oswald de Andrade, de quem foi companheira. Parque Industrial, publicado em 1933, obra ímpar da escritora, militante e feminista, emerge, portanto, como uma escolha enriquecedora e indispensável para compor a lista de leituras obrigatórias do Vestibular UFSC 2025.

Marcado por uma narrativa vibrante e comprometida com a crítica social, o romance oferece uma imersão nos dilemas da sociedade brasileira do início do século XX, contribuindo significativamente para a formação literária e a consciência política. A força do romance reside não apenas na maestria narrativa de Pagu, experimental e sintética, mas também na sua perspicaz abordagem das questões de gênero, classe e poder. Ao retratar a vida em um contexto industrial, a autora desvela as intrincadas relações de opressão que permeiam a sociedade, proporcionando aos/às leitores/as uma visão crítica e esclarecedora sobre as desigualdades estruturais que persistem até os dias atuais, tais como a precarização do trabalho, jornadas laborais exaustivas, a subvalorização do trabalho da mulher.

Tendo como ponto de foco três personagens, Maria, Lia e Helena, a obra personifica a luta feminina por autonomia e igualdade no período de industrialização emergente de São Paulo, notadamente no ambiente têxtil do bairro do Brás, desafiando os arraigados padrões tradicionais da época de forma combativa. Sua jornada pela busca da identidade e liberdade individual representa um poderoso convite à reflexão sobre os estereótipos de gênero, à necessidade de desconstrução de normas patriarcais e à luta da classe proletária da sociedade capitalista industrial da época.

Além disso, Parque Industrial é um retrato autêntico da diversidade cultural e das tensões políticas que caracterizaram o Brasil nas primeiras décadas do século XX, cumprindo, assim, função de testemunho histórico ao unir o estético e o político, e que permite um mergulho na história e na formação da identidade nacional de modo mais crítico.